sábado, 21 de junho de 2014

Rioda: um anagrama do Amor

Ao Céu.
Com amor.


O Amor é uma coisa mesmo incrível; diferente da paixão, que é um sentimento efêmero, explosivo, carnal e possessivo e que se esvai, que passa como um rio; ele é benigno, paciente e o seu peculiar altruísmo é capaz de unir-se a alguns aspectos da paixão e, mesmo assim, ainda ter a capacidade de não se deixar corromper.
(...)
Juntos estavam os dois ali: a olhar para o céu. "Está vendo aquele conjunto de estrelas?", ela lhe indagou. "Pois é, dou todas elas para você. Dou todas elas, porque você é parte do meu céu. Cielo. Célio: que do latim, também significa céu. Uma pena não ter tido tempo de te dar outro conjunto de estrelas, enquanto estávamos no hemisfério norte. Só assim, em qualquer dos hemisférios em que você estivesse e olhasse para o céu, poderia se lembrar de mim. De nós." Arrematou.
Rioda ficou sem saber o que falar, sem saber o que fazer. Olhou para Clara, com aquele típico olhar misterioso e com aquele meio sorriso em que despontavam, em cada extremidade de sua boca, duas covinhas.
Havia uma ligação muito intensa entre os dois na qual nem ela, e muito menos ele, poderiam se dar conta e pior: explicar. Trocaram o tal olhar, ele a puxou para si e deu-lhe um beijo terno na testa. Permaneceram na sacada de um hotel qualquer de uma das tão famosas ilhas de Cabo-Verde, a contemplar aquele manto negro; com seus peculiares pontos de luz que era o Célio; em uma dessas noites tipicamente quentes e com aquela suave brisa que ao tocar nossas faces, nos deixa mais contentes conosco e com o universo que nos cerca e com uma vontade a mais de amar, de deixar-se levar.
- Vamos dar uma volta na praia? - Rioda lhe perguntou, enquanto a puxava mais para perto de si e passava a mão pela sua face, tirando uma mecha de cabelo que cobria o seu rosto. - Eu estava com saudades.
- Vamos! - Ela desviou o assunto, não queria ter de dizer-lhe o tanto que havia sentido falta daquela companhia, das risadas. Daquele abraço.
Clara era daquelas garotas misteriosas, simples e com uma genuína franqueza, capaz de intimidar o mais sincero súdito de um rei. Ao mesmo tempo que conseguia ser direta, escondia por trás de sua simulada auto-confiança, uma baixa auto-estima e uma sensibilidade que só era ativada e demonstrada para as pessoas mais próximas de si. Só quem a conhecia bem, sabia que tudo aquilo que ela demonstrava, não passava de uma farsa. Mas ela tinha personalidade e isso podia ser visto, sem olhares muito críticos, por qualquer um através da forma como explicitava suas ideias, como construía seus argumentos e através de seu humor.
Estava quente. Muito, até. Ela usava um longo vestido branco. Um colar muito grande e colorido, e os seus cabelos cacheados se emaranhavam ao confrontarem-se com aquela brisa, que já estava virando ventania: um vendaval de emoções que afloravam em seu coração e em um pseudo-universo, criado por si.
Por outro lado, Rioda era o contraponto em relação à maioria das características de Clara: um anagrama quase indecifrável para ela. Rioda podia ser muitas personificações de diversas coisas que ela queria para si. Que sonhara durante tanto tempo. Que ansiara talvez, por segundos. Era aí que o famoso ditado popular de "os opostos se atraem", se encaixava em relação aos dois.
Tímido, de poucas palavras, conciso e ao mesmo tempo subjetivo. Alto, de um olhar significativamente cor de abismo, opaco, e muito diferente dos de Clara; sem luz. Ele havia sofrido bastante, fato. Os dois haviam. Esta só podia ser a explicação para a harmonia na relação dos dois.
Chegaram à praia, correram, brincaram, riram. Já eram amigos há tanto tempo... cinco, seis anos talvez. Clara sentia o que ele também sentia, mas ambos eram muito amigos para falarem um ao outro o que acontecia dentro do estômago de cada um, todas aquelas breves vezes em que se encontravam.
- Você volta quando para o Brasil? - Ele lhe perguntou, um tanto triste, mas disfarçando bem.
- Amanhã - Lhe respondeu com aquele sorriso maroto, que só ela sabia fazer em ocasiões em que dentro de si, o coração queria gritar - Meu voo teve escala aqui, desculpa por não dizer quanto tempo ia ficar. - Ela sabia que se houvesse dito que eles teriam apenas 24 horas para desfrutarem juntos de tão pouco tempo, ele não iria nem arriscar vê-la. Ele era assim: complicado, misterioso, sistemático.
- Acho que já devemos voltar para o hotel, estou meio cansada da viagem... - Ela continuou enquanto puxava a mão dele, fazendo-o tropeçar e cair no chão. Ela riu alto, enquanto saía correndo dele a lhe chamar de parvo. Ele gritou um: "Chiiiii, você me paga!" e correu atrás dela.
Ele sempre a chamava de 'Chi', sabe-se lá onde ele tinha tanta criatividade para dar-lhe apelidos, mas sempre inovava com diversos: em crioulo, em português brasileiro. Em inglês. Outra característica de Rioda era a sua inteligência inter-textual, artística, sagaz. Uma das coisas que tanto conquistava Clara, era esse seu outro poder: o de saber envolver coisas práticas à teóricas.
Ao chegarem ao hotel, Clara resolveu abrir uma champagne e os dois começaram a beber. Contaram tudo - ou quase tudo - um ao outro o que havia se passado durante aquele tempo: seus amores, amizades e experiências.
O que restou além da garrafa vazia de um Dom Pérignon, foram dois amigos que também descobriram ser amantes um do outro. Os dois estavam novamente na sacada quando aconteceu. Ela fumava tabaco enquanto devaneava na imensidão negra daquele céu, nos olhos dele, também negros e na música dos dois, que tocava ao fundo: um kizomba de Nelson Freitas, "Something good".
Ele lhe disse que precisava ir e, no segundo beijo que foi dar em sua face, um outro beijo súbito - porém sutil - nos lábios de ambos, aconteceu. Quando se deram conta, já estavam na cama, olhando para o teto do quarto a brincarem com as sombras que o abajur projetava através daquela meia luz. Penumbra: o contraste perfeito para designar Clara e Rioda. Claridade e abismo. Luz e escuridão. Branco no preto. Óleo e água. Contraste sem fim.
Amaram-se e amaram-se uma vez mais. Clara queria estar dentro do coração dele. Dos olhos dele. Em seus lábios. Já Rioda, como um rio que passa, devastando tudo e escondido através de tantos anagramas que poderia ser para ela, ser idealizado por ela; só a queria para lhe iluminar um pouco. Ele queria estar ali dentro dela... para sempre.
Clara passava seus dedos sobre aquela pele macia, quente e era como se as pontas de seus indicadores, pudessem "ouvir" cada batida do coração dele, que agora tão perto do dela estava. Eles tinham pouco tempo e um turbilhão de ideias começou a aflorar na mente dela. Tentou não pensar... afinal, não era mesmo preciso.
De manhã quando ela acordou, havia um bilhete ao lado da cama dizendo:
"Foi ótimo revê-la, te vejo no Brasil, my nigga. Um beijo. Com afeto, Rioda".
Aquilo foi um baque, mas ela já sabia mesmo que não podia esperar muito. Não naquela situação, Não dele. Não daquele momento. Arrumou suas malas, dirigiu-se ao aeroporto de São Vicente e no caminho, dentro do táxi... só conseguia chorar. Chorava. Chorava tanto, que suas lágrimas só a faziam lembrar de Rio. Um rio vasto, longo. Cheio. Tão cheio quanto os seus olhos. Olhos cheios de lágrimas. Rio... Cheio. Rioda.
"Rioda", pensou alto.
E ela só conseguia - além de chorar - pensar nas estrelas, no efeito do champagne, no poder dos seus dedos, daquela faísca luminosa naqueles olhos quase sem luz e daquelas duas covinhas que apareciam todas as vezes que ele resolvia sorrir para ela.
"Rioda", pensou novamente, mas desta vez sem coragem e sem forças para repetir aquele nome uma vez mais.
Um Rio, duas covas, um anagrama.
E muitas lágrimas.

São Carlos, São Paulo - Brasil 22.06.2014 00:17 hrs